segunda-feira, 24 de novembro de 2014

MULHERES BAIANAS

 Crônica de Luiz Carlos Facó

Reverenciar, lembrar tais mulheres é assinalar como a Bahia se plasmou, tomou feição. É traçar o nosso caráter que tem tudo delas: altivez, perseverança, bondade, dignidade e força empreendedora.

Catarina Paraguaçu

A Bahia é feminina até no nome. Graças à beleza, à denguice, à sensibilidade, à inteligência, à coragem das mulheres baianas, nossa terra ao longo do tempo fez-se mulher. Daqueles seres perfeitos, tomou-lhes as virtudes e a eles submeteu-se numa doce, saudável e gostosa escravidão.
Esse perfil, sobejamente conhecido, moldou-se desde os primórdios da nossa terra. As responsáveis por tal tecido único são incontáveis. Para identifica-las, basta menearmos nossas cabeças olhando em derredor, ou arriscando um simples mergulho no passado.
Lá vamos encontrar a índica Catarina Paraguaçu, a mulher de Diogo Álvares, o Caramuru.
Obstinada empenhou-se em salvar uma linda mulher e uma criancinha vítimas de um naufrágio no litoral de Salvador. Vislumbradas numa premonição repetida a cada vez que dormia e sonhava.
Nos seus devaneios elas ali estavam, súplices, a pedir-lhe socorro.
Inconformada por não encontrá-las nas diversas buscas que empreendeu, Catarina jamais desistiu de achá-las. A cada tentativa fracassada, promovia outra na certeza de alcançar sucesso.
Numa das muitas expedições que mandou em ajuda às deserdadas, seus integrantes acharam, em lugar ermo, uma imagem de Nossa Senhora  com uma criança no regaço. Resgatada e levada aos cuidados de Catarina, esta logo reconheceu aquelas figuras como sendo as que povoavam os seus sonhos pedindo-lhe ajuda e amparo.
O auxílio rogado a Catarina foi-lhes concedido. A protetora não mediu esforços para resgatá-las> o abrigo se traduziu na entronização da mãe de Jesus, sob o nome de Nossa Senhora das Graças, na ermida mandada construir pela devotada índia, em homenagem àquelas santas criaturas, no mesmo local onde hoje se ergue a Igreja da Graça.


Nos sublimes versos do Frei Santa Rita Durão, percebemos a beleza e a grandiosidade do episódio. Ei-los:
“Pôs-lhe os olhos a dama transportada,
Esta é, disse, é esta a Gran Senhora
Que vi no doce sonho arrebatada!
Aqui vos venho achar. Mãe piedosa,
No meio, disse, dessa gente infanda
Infanda como eu fui, se o vosso lume
Não me emendara o bárbaro o bárbaro costume.
Por santa invocação foi aclamada
A Senhora da Graça e com fé pura
Foi desde aquele dia venerada
Singular protetora da Bahia.”

E já que enveredei pela poesia, vale prosseguir citando o mesmo vate referindo-se ao desespero de Moema, uma bela índia apaixonada por Caramuru, que ao vê-lo partir preferiu nadar atrás da nau que o transportaria rumo à Europa, até que as forças lhe exaurissem, exprimindo, assim, de forma contundente, sua dor pela ausência do ente amado. Diria ela, porventura pudesse, presumo eu, naquele instante de agonia e desespero: sem sua presença ao meu lado abato-me. Todas as minhas resistências se
esvaem por sabê-lo distante. Prefiro a morte, a ficar sem vê-lo.

Soror Joana Angélica

Contudo, o Frei poeta, em versos candentes, narra o episódio dando versão diversa às derradeiras palavras pronunciadas pela apaixonada índia:
“Copiosa multidão da nau francesa
Corre a ver o espetáculo, assombrada,
E ignorando a ocasião da estranha empresa
Pasma da turba feminil que nada.
Uma que as precede em gentileza
Não vinha menos bela que irada:
Era Moema, que de inveja geme,
E já vizinha à nau, se apega ao leme.
Bárbaro, a bela diz, tigre e não homem...
Porém o tigre por cruel que brame,
Acha forças, que enfim o domem;
Se a ti domou, por mais que te ame.
A vil Paraguaçu, que sem que o creia,
Sobre ser-me inferior, é néscia e feia
Ah! Diogo cruel! – Disse com mágoa
E sem mais ser vista sorveu-se n’água.”

Falar da Bahia mulher  não é restringir-se a Catarina e Moema. É cantar todas as suas filhas, sem parcimônia.
Porém, é bom destacar algumas delas, mesmo sabedor de que incorro em injustiça para com muitas outras.
Como: Maria Quitéria e Soror Joana Angélica.
Bravas, indomáveis, resolutas na fé e nos seus ideais.

Maria Quitéria

A primeira sob as vestes de homem incorporou-se às forças libertárias que lutavam pela consolidação da nossa independência, nos campos de batalha da Bahia, contra os portugueses, ombreando-se em coragem e bravura aos seus colegas de armas, o que lhe valeu a Medalha da Ordem Imperial do Cruzeiro.
A segunda, por ter disposto como barreira aos invasores do convento, onde mourejava, aos quais advertiu: “... aqui só entrarão se passarem por cima do meu cadáver.”  
Alexandrina Ramalho, cantora lírica, dona de desusado apego às artes, que em tempos difíceis criou a Sociedade de Cultura Artística da Bahia – SCAB, quando a nossa terra não dispunha de um único teatro capaz de abrigar os artistas mundialmente famosos, que ela trouxe para embalar, enternecer e educar musicalmente as plateias soteropolitanas.
Menininha do Gantois, mãe de todos nós, cuidadosa protetora da Bahia, dona de uma simplicidade e doçura irresistíveis.
Mãe Cleusa do Gantois, herdeira das qualidades da Mãe Menininha.
Mãe Stella de Oxossi, Maria Stella de Azevedo Santos, autoridade inconteste  do Terreiro Ilê Axé Opô Ofunjá, imortal pela Academia de Letras da Bahia, iniciada nos segredos do candomblé, há mais de sessenta anos.
D. Canô, padroeira de Santo Amaro da Purificação. Tão estimada e acatada pela nossa gente, que uma música que fala dela, em um dos seus versos, com extrema felicidade, tangencia essa submissão: “Dona Canô chamou, eu vou.”
Gal Costa, Maria Bethânia, Ivete Sangalo, donas de musicalidade invulgar, que empolga a mim, particularmente, e aos brasileiros.

Mãe Menininha do Gantois

Daniela Mercury, corajosa musa, cujos trinados rivalizam com o do uirapuru, que, segundo a lenda, faz calar os demais pássaros quando começa a gorjear.
Júlia de Fetal, morta “na flor da juventude e formosura”, com uma bala de ouro, sussurra a crendice popular, por despertar no ente amado um ciúme doentio.
Edite Mendes Gama Abreu, Ana de Góes Bittencourt, Sonia Coutinho Miriam Fraga, Hildegardes Vianna, escritoras de mérito. Consuelo Pondé Senna, pesquisadora e historiadora. Henriqueta Catarino, Anfrísia Santiago, Olga Mettig, mulheres de escol que disseminaram na nossa terra o valor da educação. Henriqueta brindando-nos com o Instituto Feminino, e Olga com a Factur – Faculdade de Turismo da Bahia.
Madre Vitória da Encarnação, de quem se ocupou Pedro Calmon em seu livro Figua de Azulejo: nossa primeira santa, exemplo de modéstia e amor ao próximo. Irmã Dulce, nossa mãe maior, no dizer de Lauro Barreto Fontes, “... Santa por predestinação divina, por devoção aos que foram por ela amados, ricos e pobres. Santa... pelos milagres que realizou em vida, os hospitais, as creches, as escolas, as maternidades, os abrigos dos velhos, o lar da criança.”
Regina Dourado, Yumara Rodrigues, Nilda Spencer, atrizes talentosas que glorificam o teatro da Bahia.
Todas, sábias o suficiente para abominarem o feminismo radical que apregoa possam edificar tudo que os homens não se atreveriam a fazer, porquanto, de forma atilada, previram que às suas necessitudes, no tempo e no espaço, estão intimamente ligadas as dos homens.
É certo que na história da vida humana existiram e floresceram Judith e Corday, honrando a pátria, Madame de Stael e Savigné, dando brilho à literatura, Vitória e Isabel, protestante e católica, engrandecendo seus povos, Teodora e Marozia, fazendo papas.

Nilda Spencer

Entretanto, as nossas fizeram muito mais. Pontificaram e pontificam por terem constituído um povo e moldado o seu caráter à “sua imagem e semelhança”.
Porque nascidas “não... só para o adorno; ... para a luta, para o amor e para o triunfo do mundo inteiro” (Honoré de Balzac).
Reverenciar, lembrar tais mulheres é assinalar como a Bahia se plasmou, tomou feição. É traçar o caráter, de cada um de nós que tem tudo delas: altivez, perseverança, bondade, dignidade e força empreendedora. Sobretudo, os sentimentos da solidariedade e do amor que desabrocham dos nossos corações com vigor, força, energia, fazendo inundar a nossa terra de sortilégios, tornando-a sedutora e transcendentalmente fascinante.

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