Crônica de Luiz Carlos Facó
Reverenciar, lembrar tais mulheres é assinalar como a Bahia se plasmou,
tomou feição. É traçar o nosso caráter que tem tudo delas: altivez,
perseverança, bondade, dignidade e força empreendedora.
A
Bahia é feminina até no nome. Graças à beleza, à denguice, à sensibilidade, à
inteligência, à coragem das mulheres baianas, nossa terra ao longo do tempo
fez-se mulher. Daqueles seres perfeitos, tomou-lhes as virtudes e a eles
submeteu-se numa doce, saudável e gostosa escravidão.
Esse
perfil, sobejamente conhecido, moldou-se desde os primórdios da nossa terra. As
responsáveis por tal tecido único são incontáveis. Para identifica-las, basta
menearmos nossas cabeças olhando em derredor, ou arriscando um simples mergulho
no passado.
Lá
vamos encontrar a índica Catarina Paraguaçu, a mulher de Diogo Álvares, o
Caramuru.
Obstinada
empenhou-se em salvar uma linda mulher e uma criancinha vítimas de um naufrágio
no litoral de Salvador. Vislumbradas numa premonição repetida a cada vez que
dormia e sonhava.
Nos
seus devaneios elas ali estavam, súplices, a pedir-lhe socorro.
Inconformada
por não encontrá-las nas diversas buscas que empreendeu, Catarina jamais
desistiu de achá-las. A cada tentativa fracassada, promovia outra na certeza de
alcançar sucesso.
Numa
das muitas expedições que mandou em ajuda às deserdadas, seus integrantes
acharam, em lugar ermo, uma imagem de Nossa Senhora com uma criança no regaço. Resgatada e levada
aos cuidados de Catarina, esta logo reconheceu aquelas figuras como sendo as
que povoavam os seus sonhos pedindo-lhe ajuda e amparo.
O
auxílio rogado a Catarina foi-lhes concedido. A protetora não mediu esforços
para resgatá-las> o abrigo se traduziu na entronização da mãe de Jesus, sob o
nome de Nossa Senhora das Graças, na ermida mandada construir pela devotada
índia, em homenagem àquelas santas criaturas, no mesmo local onde hoje se ergue
a Igreja da Graça.
Nos
sublimes versos do Frei Santa Rita Durão, percebemos a beleza e a grandiosidade
do episódio. Ei-los:
“Pôs-lhe
os olhos a dama transportada,
Esta
é, disse, é esta a Gran Senhora
Que
vi no doce sonho arrebatada!
Aqui
vos venho achar. Mãe piedosa,
No
meio, disse, dessa gente infanda
Infanda
como eu fui, se o vosso lume
Não
me emendara o bárbaro o bárbaro costume.
Por
santa invocação foi aclamada
A
Senhora da Graça e com fé pura
Foi
desde aquele dia venerada
Singular
protetora da Bahia.”
E
já que enveredei pela poesia, vale prosseguir citando o mesmo vate referindo-se
ao desespero de Moema, uma bela índia apaixonada por Caramuru, que ao vê-lo
partir preferiu nadar atrás da nau que o transportaria rumo à Europa, até que
as forças lhe exaurissem, exprimindo, assim, de forma contundente, sua dor pela
ausência do ente amado. Diria ela, porventura pudesse, presumo eu, naquele
instante de agonia e desespero: sem sua presença ao meu lado abato-me. Todas as
minhas resistências se
Soror Joana Angélica
Contudo,
o Frei poeta, em versos candentes, narra o episódio dando versão diversa às
derradeiras palavras pronunciadas pela apaixonada índia:
“Copiosa
multidão da nau francesa
Corre
a ver o espetáculo, assombrada,
E
ignorando a ocasião da estranha empresa
Pasma
da turba feminil que nada.
Uma
que as precede em gentileza
Não
vinha menos bela que irada:
Era
Moema, que de inveja geme,
E
já vizinha à nau, se apega ao leme.
Bárbaro,
a bela diz, tigre e não homem...
Porém
o tigre por cruel que brame,
Acha
forças, que enfim o domem;
Se
a ti domou, por mais que te ame.
A
vil Paraguaçu, que sem que o creia,
Sobre
ser-me inferior, é néscia e feia
Ah!
Diogo cruel! – Disse com mágoa
E
sem mais ser vista sorveu-se n’água.”
Falar
da Bahia mulher não é restringir-se a
Catarina e Moema. É cantar todas as suas filhas, sem parcimônia.
Porém,
é bom destacar algumas delas, mesmo sabedor de que incorro em injustiça para
com muitas outras.
Como:
Maria Quitéria e Soror Joana Angélica.
Maria Quitéria
A
primeira sob as vestes de homem incorporou-se às forças libertárias que lutavam
pela consolidação da nossa independência, nos campos de batalha da Bahia, contra
os portugueses, ombreando-se em coragem e bravura aos seus colegas de armas, o
que lhe valeu a Medalha da Ordem Imperial do Cruzeiro.
A
segunda, por ter disposto como barreira aos invasores do convento, onde
mourejava, aos quais advertiu: “... aqui só entrarão se passarem por cima do
meu cadáver.”
Alexandrina
Ramalho, cantora lírica, dona de desusado apego às artes, que em tempos
difíceis criou a Sociedade de Cultura Artística da Bahia – SCAB, quando a nossa
terra não dispunha de um único teatro capaz de abrigar os artistas mundialmente
famosos, que ela trouxe para embalar, enternecer e educar musicalmente as
plateias soteropolitanas.
Menininha
do Gantois, mãe de todos nós, cuidadosa protetora da Bahia, dona de uma
simplicidade e doçura irresistíveis.
Mãe
Cleusa do Gantois, herdeira das qualidades da Mãe Menininha.
Mãe
Stella de Oxossi, Maria Stella de Azevedo Santos, autoridade inconteste do Terreiro Ilê Axé Opô Ofunjá, imortal pela
Academia de Letras da Bahia, iniciada nos segredos do candomblé, há mais de
sessenta anos.
D.
Canô, padroeira de Santo Amaro da Purificação. Tão estimada e acatada pela
nossa gente, que uma música que fala dela, em um dos seus versos, com extrema
felicidade, tangencia essa submissão: “Dona Canô chamou, eu vou.”
Gal
Costa, Maria Bethânia, Ivete Sangalo, donas de musicalidade invulgar, que
empolga a mim, particularmente, e aos brasileiros.
Mãe Menininha do Gantois
Daniela
Mercury, corajosa musa, cujos trinados rivalizam com o do uirapuru, que,
segundo a lenda, faz calar os demais pássaros quando começa a gorjear.
Júlia
de Fetal, morta “na flor da juventude e formosura”, com uma bala de ouro,
sussurra a crendice popular, por despertar no ente amado um ciúme doentio.
Edite
Mendes Gama Abreu, Ana de Góes Bittencourt, Sonia Coutinho Miriam Fraga,
Hildegardes Vianna, escritoras de mérito. Consuelo Pondé Senna, pesquisadora e
historiadora. Henriqueta Catarino, Anfrísia Santiago, Olga Mettig, mulheres de
escol que disseminaram na nossa terra o valor da educação. Henriqueta brindando-nos
com o Instituto Feminino, e Olga com a Factur – Faculdade de Turismo da Bahia.
Madre
Vitória da Encarnação, de quem se ocupou Pedro Calmon em seu livro Figua de
Azulejo: nossa primeira santa, exemplo de modéstia e amor ao próximo. Irmã
Dulce, nossa mãe maior, no dizer de Lauro Barreto Fontes, “... Santa por
predestinação divina, por devoção aos que foram por ela amados, ricos e pobres.
Santa... pelos milagres que realizou em vida, os hospitais, as creches, as
escolas, as maternidades, os abrigos dos velhos, o lar da criança.”
Regina
Dourado, Yumara Rodrigues, Nilda Spencer, atrizes talentosas que glorificam o
teatro da Bahia.
Todas,
sábias o suficiente para abominarem o feminismo radical que apregoa possam
edificar tudo que os homens não se atreveriam a fazer, porquanto, de forma
atilada, previram que às suas necessitudes, no tempo e no espaço, estão
intimamente ligadas as dos homens.
É
certo que na história da vida humana existiram e floresceram Judith e Corday,
honrando a pátria, Madame de Stael e Savigné, dando brilho à literatura,
Vitória e Isabel, protestante e católica, engrandecendo seus povos, Teodora e
Marozia, fazendo papas.
Nilda Spencer
Entretanto,
as nossas fizeram muito mais. Pontificaram e pontificam por terem constituído
um povo e moldado o seu caráter à “sua imagem e semelhança”.
Porque
nascidas “não... só para o adorno; ... para a luta, para o amor e para o
triunfo do mundo inteiro” (Honoré de Balzac).
Reverenciar,
lembrar tais mulheres é assinalar como a Bahia se plasmou, tomou feição. É
traçar o caráter, de cada um de nós que tem tudo delas: altivez, perseverança,
bondade, dignidade e força empreendedora. Sobretudo, os sentimentos da
solidariedade e do amor que desabrocham dos nossos corações com vigor, força,
energia, fazendo inundar a nossa terra de sortilégios, tornando-a sedutora e
transcendentalmente fascinante.
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