A quebra da Bolsa de Nova York, em
1929, marcou o fim de uma era de euforia e prosperidade e preparou o cenário
para uma depressão mundial que culminaria na Segunda Guerra
Felipe Van Deursen
Como fazia toda quinta-feira, naquela manhã de
outubro de 1929 o mítico bilionário do
petróleo John Rockefeller encontrou seu engraxate, com quem gostava de
conversar sobre trivialidades. Enquanto lustrava o couro, o garoto olhou para o
homem mais rico do mundo e disparou: “Fiquei sabendo de uns papéis que vão
subir pra valer, senhor”. Rockefeller dobrou o jornal, fitou o guri e, ao
voltar ao escritório, vendeu boa parte de seus papéis na Bolsa de Valores de
Nova York. “Se o menino que lustra seus sapatos sabe tudo sobre o mercado,
então algo muito errado está acontecendo”, afirmou.
Uma semana depois, no 24 de outubro que ficou
conhecido como “quinta-feira negra”, a Bolsa da metrópole americana iniciava
uma traumática queda, levando milhares de pessoas à falência. Bancos e indústrias foram arruinados.
Pequenos investidores também foram à bancarrota. Eram professores, garçons,
datilógrafos. Gente que havia sido atraída para o mercado de ações numa época
de deslumbramento: os loucos anos 20.
É bastante
provável que a história de Rockefeller, que se safou razoavelmente ileso da
quebra (ou crack, em inglês, como o episódio ficou conhecido), seja lenda –
criada por ele ter sido um dos poucos investidores a não perder muito dinheiro. Fato é
que, três anos depois, engraxates como o do bilionário eram a profissão que
mais crescia em Manhattan. O jornal The New York Times registrou que, além dos
cerca de sete mil garotos lustrando sapatos para ajudar a família (cena
praticamente inexistente no verão de 1929), havia uma multidão de camelôs
vendendo gravatas baratas, balões coloridos e toda sorte de bugigangas. Nova York vivia seus dias de Terceiro Mundo.
A Grande Depressão assolava a América.
Loucura, loucura...
Quando a Primeira Guerra terminou, em 1918, a
Europa estava devastada e suas potências, enfraquecidas. Os Estados Unidos, já
o país mais rico do mundo, passaram a suprir o continente de manufaturas e
alimentos. Durante praticamente toda a década de 20, o aumento da produção
gerou crescimento e prosperidade ao país, que dominou outros mercados, como a
América Latina. Era tão grande o otimismo que se acreditava estar diante do fim
da era dos ciclos econômicos – o vaivém da economia, períodos de recessão entre
épocas de expansão, que ocorreram diversas vezes ao longo da história.
O governo facilitava a economia liberal, sem
interferências, reduzindo impostos. Calvin Coolidge, eleito presidente
americano em 1924, disse que “o negócio dos Estados Unidos são os negócios”.
Com o mercado livre, leve e solto, surgiu uma nova moda, ao lado do Ford T e do
jazz de Duke Ellington: investir em ações. A oferta de produtos como carros e
eletrodomésticos só aumentava e empréstimos e vendas a crédito se popularizaram
para ajudar as pessoas a comprar cada vez mais.
No meio da década, a Europa voltou a competir por
clientela e a produção americana ficou superaquecida. Não havia consumidores
para tanta oferta. Mas o otimismo não
foi contido, afinal a “mão invisível” do mercado sempre se adaptaria para
manter o país no rumo do crescimento. Em um discurso de 1928, o novo
presidente, Herbert Hoover, declarou: “Estamos
hoje mais próximos do triunfo final sobre a pobreza do que já esteve qualquer
outra terra na história”.
Em 1928, a
valorização das ações começou a dar passos bem mais largos do que o crescimento
da própria economia. Novas tecnologias, como radiodifusão e carros,
eram as queridinhas dos investidores. Uma ação da Radio Corporation of America,
que em 1921 custava 1,5 dólar, valia 57 vezes mais sete anos depois. A
especulação galopava. Em Salve-se Quem Puder, o historiador inglês Edward Chancellor afirma que em 1929 “os
especuladores se tornaram surdos aos alertas. (...) Em vez de raciocinar, eles se alimentavam dos crescentes boatos sobre
riquezas fabulosas ganhas no mercado acionário por motoristas, vaqueiros,
atrizes”.
Em
setembro, o índice Dow Jones, de avaliação do mercado, registrou seu pico
máximo no ano e o mercado começou a sentir que uma queda se aproximava. O
volume de negócios diminuiu até a situação se tornar insustentável. “Houve uma
crise financeira, da bolsa, e uma econômica, de produção e força de trabalho”,
explica o historiador Wagner Pinheiro Pereira, autor de 24 de Outubro de 1929.
“A crise levou acionistas a colocar ações à venda. Com excesso de ações e
poucos compradores, o preço caiu, arruinando as pessoas. Sem recursos, as empresas
demitiram. Bancos e fábricas faliram, e os efeitos se espalharam pelo mundo.” O
triunfo de Hoover nunca chegou. Mas o pior ainda estava por vir.
O
ex-ministro das finanças do Reino Unido, Winston Churchill, dono de algumas
ações em Wall Street, visitou a Bolsa naquele fatídico 24 de outubro.
Presenciou um pânico silencioso – naquela época, não era permitido gritar ou
correr no pregão –, mesmo sem o dia ter registrado nenhuma falência de grande
empresa. O medo estava no ar pela simples queda dos preços das ações. Uma
multidão nervosa se acotovelava do lado de fora, quando um homem subiu no alto
de um prédio. O nervosismo aumentou. À toa, pelo menos naquele momento: era só
um operário fazendo consertos de rotina. Porém,
naquele dia foram registrados 11 suicídios, como o de uma funcionária de joalheria que se enforcou, com os
papéis de cobrança sob seus pés. Para
ela e outros 90% que se aventuraram na Bolsa, o investimento virou dívida.
Os preços
caíram até a “terça-feira negra”, dia 29, quando o desespero tomou a Bolsa.
Corretores berravam, agarravam-se pelo pescoço, rasgavam paletós. Rockefeller
anunciou em público que voltaria a comprar ações diariamente, o que reanimou o
mercado, mas acabou virando piada. O humorista de rádio Eddie Cantor não perdoou:
“Eu bem que acredito. Quem mais ainda tem dinheiro, além dele?” Eddie, que perdera 1 milhão de dólares,
tratou de criar lendas de suicídios que ficaram famosas, como a dos
recepcionistas do Hotel Ritz que perguntavam a quem chegava ao hotel se iam se
hospedar ou se matar, atirando-se de um andar alto – embora não tenha
havido um aumento significativo de suicidas em relação ao ano anterior.
A crise, em
si, acabou em novembro. Atingiu, além de Churchill, que ficou quase 600 mil
dólares mais pobre, cerca de 1,2 milhão de pessoas nos Estados Unidos – menos de
1% da população. O ano de 1930 começou com novas promessas de emprego, mas a
melhora do humor do mercado foi efêmera.
Em dois anos, o Produto Nacional Bruto (soma da
renda de pessoas e empresas americanas) caiu 60%. Em 1931, faliram mais bancos que durante os anos 20 inteiros. “A Depressão foi de longe o pior momento da
história econômica”, afirma o economista americano Randall Parker. A falta
de dinheiro atingiu duramente as fábricas. Industriais faliram, entre eles
William Durant, fundador da General Motors – empresa-símbolo da especulação. Em
1936, para se sustentar, Durant lavou pratos em Nova Jersey. Charles Mitchell,
presidente do National City Bank (o atual Citibank) durante os anos 20, foi
forçado a se demitir após ser acusado de não ter declarado impostos. Mesmo sem
ser condenado por falta de provas, foi considerado um dos responsáveis pelo
crack. A popularidade de Hoover afundou junto com a autoestima da nação.
Filas se
espalharam pelo país. Filas por um prato de sopa rala, filas por um pedaço de
pão, filas de homens em busca de emprego. No campo, o sinal
de pobreza era claro: favelas com cabanas feitas de papelão e lata proliferavam
e agricultores vagavam pelas estradas à procura de serviços temporários.
Enquanto nas fazendas abandonadas maçãs apodreciam e urubus comiam a carne de
carneiros sacrificados em cânions (atirados pelos proprietários que não queriam
gastar dinheiro com o abate), na cidade as pessoas morriam de fome. Ninguém tinha
dinheiro para consumir. Assim, ninguém vendia.
Em 1932,
uma comissão foi organizada pelo governo para apurar as falcatruas em Wall
Street. Constatou remuneração excessiva e manipulações. A Bolsa foi definida
como um “cassino”, deixando a população ainda mais insatisfeita. Com um
discurso que propagava intervenção do Estado na economia, o democrata Franklin
D. Roosevelt foi eleito presidente e em 1933, auge da recessão, anunciou um
pacote econômico para salvar o país: o New
Deal (novo acordo, em inglês).
A essa altura, com um quarto de seus trabalhadores
sem emprego, a recessão dos Estados
Unidos atingiu a Europa e outros rincões. Em 1931, os franceses só tiveram
tempo de caçoar da “presunçosa economia anglo-saxã” antes de também cair na
Depressão, assim como os ingleses. O tabuleiro mundial estava de pernas para o
ar, a ponto de a União Soviética de Josef Stálin tornar-se destino para muitos
jovens nova-iorquinos.
Na Alemanha, traumatizada por uma enorme crise em
1923, o terreno para a ascensão de um sistema radical e nacionalista estava
preparado. O historiador Eric Hobsbawn,
em A Era dos Extremos, é enfático: a Grande Depressão transformou Adolf Hitler
no senhor da Alemanha. O regime de Hitler, tal qual o de Mussolini na
Itália, foi bem-sucedido ao modernizar seus parques industriais. Em 1935, a
produção dos dois países já voltara ao nível de 1929. Enquanto isso, nações subdesenvolvidas precisaram se industrializar, já
que suas economias agrárias de exportação foram para o ralo, como a do café
brasileiro.
Nos Estados Unidos, as reformas de Roosevelt
começavam a dar resultado. Os efeitos econômicos da Depressão só foram
superados quase uma década mais tarde, com a eclosão da Segunda Guerra, que deu
ao país a chance de aumentar sua produção.
Hoje, a recessão econômica dos Estados Unidos – que
o Federal Reserve (o Banco Central do país) chegou a classificar como a pior
desde 1929 – reforça o fantasma de uma nova crise mundial. As opiniões
divergem. “No horizonte próximo, isso não acontecerá. O Fed está muito mais bem
preparado que nos anos 20 e, no mercado de ações, já houve crises piores, como
a de 1987”, diz Parker. “A crise é inerente ao sistema capitalista”, contesta
Wagner Pereira. Edward Chancellor, em seu livro, diz que “no passado sempre se
chegou a um ponto no qual tanto a especulação como o crédito atingiam os
limites da expansão. Naquele momento, o ciclo econômico ressurge (...) e a nova
era é relegada à história”. Mais cedo ou mais tarde, talvez tenhamos que
apertar os cintos.
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