Ex-presidente
percorreu durante 70 anos toda a escala do poder e era o rosto amável de
Israel.
Foi agraciado com o NOBEL da Paz.
Jerusalém 28 SET 2016 - 17:50 BRT
Shimon Peres durante uma entrevista em Madri, em 1988. RAÚL CANCIO
Ninguém é profeta na sua terra, e muito menos
numa terra de profetas. Internamente, Shimon Peres foi
líder moderado de centro-esquerda que perdia eleições para representantes da
direita nacionalista mais dura, como Menachem Begin (em 1977) e Benjamin
Netanyahu (em 1996). No resto do mundo, foi o negociador de lábia floreada, que
convenceu Charles de Gaulle a vender a Israel o
seu primeiro reator nuclear (em 1959); o refinado diplomata que contribuiu para
forjar os Acordos de Oslo com os palestinos e que compartilhou o Nobel da Paz
com Yitzhak Rabin e Yasser Arafat (em 1994). Durante quase sete décadas,
percorrendo toda a escala do poder no Estado judeu, Shimon Peres (nascido
Perski, em 1923, em território polonês hoje pertencente a Belarus) teve tempo
de sobra para constatar que sempre é possível aprender com os erros. Foi o
rosto amável de Israel.
Na
madrugada desta quarta-feira deixou de pulsar o coração do último fundador de
Israel, membro da elite juvenil que o patriarca David Ben Gurion, primeiro
chefe de Governo após a independência, em 1948, escolheu para dar forma à nova
nação, depois que a ONU aprovou a partilha da Palestina sob administração
britânica. Naquela época Peres já comprava as armas para o Haganah, o embrião
das chamadas Forças de Defesa de Israel.
Em janeiro deste ano, foi hospitalizado por
causa de um ataque cardíaco. Há uma semana, um violento derrame cerebral o
deixou às portas do coma, levando à sua morte nesta madrugada.
É difícil não encontrar seu rastro em
praticamente todos os capítulos da história contemporânea israelense, que
protagonizou desde o nascimento desta nação. O atual chefe de Governo,
Netanyahu, e o ex-primeiro-ministro Ehud Barak se viram na obrigação de lhe
abrir espaço no palco de um cinema de Jerusalém depois da estreia do filme Sabena, que descreve a operação executada no aeroporto
de Tel Aviv em 1972 para pôr fim ao sequestro de um avião dessa companhia aérea
belga. Netanyahu e Barak eram jovens oficiais dos comandos que participaram da
invasão, sob as ordens do mítico ministro da Defesa Moshe Dayan. E Peres? Ele
era o habilidoso ministro dos Transportes que negociava nos bastidores para que
os militares pudessem agir à vontade. O veterano político não se levantou da
poltrona e cedeu o palco à seguinte geração de líderes israelenses.
O então chanceler Shimon Peres (esq.)
cumprimenta o presidente da Organização para a Libertação da Palestina, Yasser
Arafat (dir.), durante a assinatura do acordo de paz do Oriente Médio de
Washington, em 1993. REUTERS
Apesar
dos reveses da política fratricida do Estado judeu, Peres manteve sua cadeira
parlamentar por mais de 48 anos quase ininterruptos. Foi primeiro-ministro em
duas ocasiões (1984-86 e 1995-96). Titular recorrente da chancelaria, ocupou
também vários outros ministérios, entre dezenas de cargos graduados, incluindo
as pastas de Defesa e Finanças. Encerrou sua carreira como chefe de Estado,
entre 2007 e 2014, mas mesmo depois disso manteve uma atividade pública à
frente do Centro pela Paz que leva seu nome, com o objetivo de estreitar os
laços entre israelenses e palestinos.
Desembarcou com a família na Terra Santa no
começo da década de 1930, fugindo da ameaça do nazismo que já se abatia sobre o
Leste Europeu. Os parentes que permaneceram na Polônia natal foram todos
exterminados no Holocausto. Àquela altura ele já havia ingressado num kibutz (fazenda coletiva) e, depois de combater na
Guerra de Independência (1948-49), foi enviado aos Estados Unidos para
concluir sua formação. Voltou a Israel em 1952, como subdiretor geral do
Ministério de Defesa. Responsável pela compra dos caças Mirage para a aviação de combate, contribuiu
para incrementar a superioridade aérea do seu país na Guerra dos Seis Dias
(1967). Graças às suas boas relações com a França, conseguiu dar início a um
programa nuclear que fez de Israel a única potência atômica – nunca
oficialmente declarada – do Oriente Médio.
Discípulo direto de Ben Gurion, Peres girou
quase sempre em torno da órbita do trabalhismo, chegando a disputar, com pouco
sucesso, a liderança partidária contra ex-chefes do Estado-Maior, como Dayan.
Parecia pisar em terreno mais firme quando se envolvia em negociações secretas
nas capitais ocidentais ou árabes do que ao participar dos cruentos conflitos
pelo poder interno. Depois do assassinato de Yitzhak Rabin, em 1995, e da
decomposição da esquerda israelense, procurou espaço no centro político, sob os
auspícios de outro ex-general linha-dura, Ariel Sharon.
Como nono presidente de Israel, afastou-se
dos papéis meramente cerimoniais e tentou, a partir de 2009, agir como
contrapeso ao viés autoritário do conservador Netanyahu. “Se deixarmos de ser
democráticos, deixaremos de ser judeus”, declarou ele numa entrevista ao EL
PAÍS em 2010.
Três anos depois, em plena campanha para as
eleições legislativas, Peres recebeu uma delegação de jornalistas espanhóis,
entre os quais se encontrava este correspondente. Durante uma hora, falou com
franqueza e passou uma descompostura no Governo de Netanyahu. Mas sua
assessoria de imprensa proibiu que suas palavras fossem publicadas, “para não
interferir no processo político em curso”.
O nonagenário presidente já havia entrado
para a história, embora continuasse tentando em vão manter um discurso ativo na
política do dia a dia. Seu desaparecimento põe fim à geração de líderes que há
68 anos colocaram de pé o novo Estado de Israel, autor de enormes feitos,
protagonista de tantos conflitos.
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